Em 2019, a maioria das expectativas para 2020 era otimista: a economia mundial e brasileira cresceria, nossa agenda de reformas evoluiria e a maior incerteza era a eleição americana. A pandemia do coronavírus nos relembrou de maneira devastadora como é difícil fazer previsões. Literalmente em poucas semanas, 2020 passou a ser um ano de tragédias, gastos globais em escala inimaginável, avanços heroicos da ciência e mudanças radicais na vida das pessoas. Diante deste quadro, todos imaginamos que problemas muito importantes como os da mudança climática e transição energética, que já enfrentavam dificuldades políticas, seriam ignorados. Novamente, e desta vez de maneira encorajadora, a realidade foi bem diferente do previsto.
A necessidade de fazer gastos trilionários de apoio a pessoas e empresas em dificuldades devido à pandemia acelerou o consenso sobre gastos públicos em um ambiente de taxas de juro nulas, ou até negativas, e que possivelmente durará muitos anos. Numa reversão da doutrina de décadas sobre equilíbrio fiscal, concluiu-se que investimentos maciços em infraestrutura não seriam inflacionários, pois o benefício econômico mais do que compensaria seu pagamento futuro. Como consequência, a União Europeia e o novo governo dos Estados Unidos apresentaram planos de estímulos à recuperação econômica em 2021 que destinam trilhões de dólares na chamada “transição energética”: investimentos em infraestrutura e inovações visando a neutralidade nas emissões de carbono no planeta. Estas políticas governamentais foram acompanhadas pelo setor privado: fundos como BlackRock, que faz a gestão de ativos da ordem de 7 trilhões de dólares, lideraram um movimento de incorporação da agenda ESG (Environment, Society and Government) em todas as análises das empresas em seu portfólio. A mesma agenda ESG está sendo incorporada às análises de risco de bancos de investimento e seguradoras no mundo inteiro, levando a um “círculo virtuoso” muito encorajador.
E como fica o Brasil neste novo ambiente?
Nossa situação em termos de recursos físicos é privilegiada, pois já partimos de uma matriz energética de baixo carbono e dispomos de opções de expansão que são simultaneamente de baixa emissão e economicamente competitivas, o que alinha dois fatores importantes. Nossa matriz energética é, adicionalmente, bem adaptada para a descarbonização de outros setores, como transporte: dispomos de etanol, biodiesel, eletricidade limpa para veículos elétricos e podemos ser competitivos para a produção de hidrogênio “verde”, tema de grande interesse para a Europa e Ásia. Também temos muitas alternativas para utilizar o gás do pré-sal para gerar riqueza ao país com benefícios ambientais, deslocando combustíveis mais poluentes na geração de eletricidade e na indústria, ou até mesmo colocando termelétricas nas plataformas de petróleo, que já dispõem de captura de carbono. Esta abundância de recursos deixa claro que os desafios energéticos do país não são físicos, nem requerem subsídios que poderiam sacrificar outras necessidades da economia. Desta forma, nossa prioridade absoluta deve ser no campo das reformas estruturais, visando criar e/ou modernizar marcos regulatórios necessários que viabilizem a criação de uma economia de baixo carbono eficiente e com instrumentos de transferência dos benefícios para o setor produtivo e sociedade em geral.
Com isto, entramos no tema central deste artigo: o que podemos esperar, e atingir, em 2021?
Por não ser um ano eleitoral, este possivelmente é o último ano para o governo aprovar reformas importantes no legislativo. O setor elétrico, em particular, começa o ano com uma agenda intensa. Há pautas bem encaminhadas, como a Medida Provisória (MP) 998/2020, que remaneja recursos para reduzir as tarifas de energia de consumidores e encerra os subsídios das renováveis. Ela precisa ser apreciada pelo Senado até o início de fevereiro para não “expirar”. Há projetos importantes como a privatização da Eletrobras, mas com evolução incerta; e o projeto de modernização do setor elétrico, que ainda aguarda tramitação no Senado, e deveria ser estar no topo da lista das pautas prioritárias para 2021. Em paralelo, ainda temos projetos relevantes com superposições aos anteriores, o que exigiria uma mínima coordenação legislativa, mas cujo avanço é ainda mais incerto: marco da geração distribuída, marco regulatório do prosumidor de energia elétrica e o código brasileiro de energia elétrica. O setor de gás aguarda com ansiedade o trâmite e aprovação no Congresso do projeto de lei que viabiliza o Novo Mercado de Gás, fundamental para mais eficiência a esta indústria. E a indústria de infraestrutura como um todo aguarda a tramitação do projeto de lei sobre licenciamento ambiental de projetos no Brasil.
No cenário otimista em que todos são aprovados, a atividade regulatória será ainda mais intensa. Por falar em regulação, é no setor elétrico que estão as maiores expectativas. O mercado espera resolver definitivamente a judicialização do risco hidrológico que permitirá o destravamento da CCEE e aguarda a abertura pela ANEEL de uma consulta pública sobre a segurança financeira das operações de comercialização no mercado. Em a MP 998 sendo aprovada, as diretrizes do mecanismo que substituirá o atual esquema de incentivos às renováveis precisarão ser anunciadas em até 12 meses após a publicação da nova lei, tornando 2021 um ano essencial para as discussões relacionadas. Em temas mais específicos, as discussões acerca da revisão das condições comerciais da compra da energia de Itaipu pelo Brasil (Anexo C) precisam avançar, assim como a regulamentação do “constrained off” eólico, solar e hidroelétrico e as adequações regulatórias para implantação de usinas híbridas de sistemas de armazenamento. No segmento de distribuição, as empresas aguardam a decisão final da ANEEL sobre o reequilíbrio contratual pelos impactos da pandemia. Estas mesmas empresas aguardam com ansiedade as discussões sobre a revisão da regulação sobre a geração distribuída, pauta que também circula no legislativo.
Pelo lado da comercialização de energia, 2021 já inicia com o preço da energia no atacado (PLD) em base horária, um vetor de eficiência que melhora o sinal econômico, permite criar novos produtos e serviços e demandará novas práticas de gestão de riscos ao mercado. Embora o consumidor cativo ainda não perceba estes sinais econômicos, sua implementação é um avanço. Da mesma forma, os primeiros derivativos financeiros começaram a ser negociados no Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (BBCE), um importante passo para separar os mercados físicos e financeiros de eletricidade.
Os leilões do setor elétrico oferecerão oportunidades de investimento em geração e transmissão. O “tamanho” dos leilões de geração dependerá muito da recuperação econômica e do ritmo de crescimento do mercado livre e da geração distribuída, que em 2020 “puxaram” os investimentos em renováveis e assim seguirão. A ANP retomou os processos para a 17ª rodada de licitações de blocos de exploração e produção de óleo e gás. E espera-se que, também em 2021, na área do pré-sal, ocorram a 7ª rodada de licitação e que o governo oferte novamente as áreas de Sépia e Atapu, no pré-sal da Bacia de Santos. O sucesso destes leilões dependerá das expectativas de investidores com o mercado de óleo e gás interno e externo, que por sua vez, possuem oportunidades e riscos em função dos avanços regulatórios no Brasil (caso do gás), dos leilões de energia e do sucesso da implementação dos pacotes de energia limpa em outros países, que afetam as expectativas de consumo e preço destes energéticos.
E no meio de toda esta agenda, 2021 inicia com as hidroelétricas com reservatórios muito baixos e recebendo chuvas bem abaixo da média histórica. Certamente isto provocará debates acalorados sobre a segurança de suprimento de eletricidade e acirrará os conflitos pelos usos múltiplos da água. A situação física de fato inspira monitoramento e cuidados e 2021 será mais um ano onde os preços e tarifas de energia estarão vulneráveis à realização das chuvas.
Por fim, os crescentes avanços tecnológicos, acelerados em 2021 pelos pacotes de transição à economia de baixo carbono de muitos países, introduz uma oportunidade para plataformas que fomentem inovação em tecnologia, serviços e modelos de negócios. Marketplaces entre investidores e startups é o que o Brasil precisa para, no meio da modernização de nossos marcos regulatórios, traduzir nossa oportunidade energética em mudanças com benefícios para a sociedade.
Sabemos que fazer previsões é difícil, especialmente sobre o futuro. Mas como dito por Antoine de Saint-Exupery, o futuro não é um lugar onde estamos indo, mas um lugar que estamos criando. Ou, nas palavras de Alan Kay, o inventor da interface gráfica dos computadores da Apple, não conseguimos prever o futuro, mas sim inventá-lo. E nesse sentido, a agenda de trabalho do setor de energia para 2021 será, como em anos anteriores, fundamental no contínuo processo de construção de inovações para uma indústria melhor.
Sobre Luiz Barroso:
Luiz Barroso é Presidente da PSR. Foi presidente da EPE e visitante na Agência Internacional de Energia. Possui experiência de mercado e acadêmica em planejamento, operação, regulação e gestão de riscos em mercados de energia e gás em mais de 30 países. É graduado em matemática e possui doutorado em matemática aplicada (otimização) pela COPPE-UFRJ.